quinta-feira, maio 28, 2015

Não és poeta. Mas és poesia.

Tu nunca foste homem de poesias. E muito menos de prosas românticas, cheias de juras de amor eterno. Mas deixa-me dizer-te: que havia qualquer coisa no jeito com que bebericavas o teu café puro, logo pela manhã, enquanto os raios de sol te incidiam no rosto. Pausada e calmamente, enquanto miravas o nada, travavas goles minúsculos e lambias os teus lábios, logo em seguida. Como se nenhuma nesga de café te pudesse escapar. E a forma como te espreguiçavas contra o meu corpo, ao acordar, num desalinhar de cabelos e cobertores. Leve e serenamente, encostavas-te em mim, como se ansiasses que o meu toque fosse o primeiro. Nunca leste nem citaste os grandes poetas, mas tanto em ti transpirava arte.

Talvez pelo quanto apaixonada eu estava por ti. Pelas tuas manhas e pelos teus feitios. Mas havia qualquer coisa na maneira como te rias abertamente, tremendo pelo corpo todo. Como se toda a alegria de um certo momento tomasse conta de ti por completo. Sempre sentiste tanto. Até na forma como te ias abaixo, com tudo o que tinhas. Até naquele momento em que te roubei um beijo, numa noite qualquer gélida, e ao separar os meus lábios dos teus, te encarei a chorar. Tremias, mas não proferias qualquer som. Só o cair das lágrimas ao longo das tuas maçãs do rosto. Como se te tivesse roubado mais que um beijo, mas também quaisquer muralhas. Quaisquer barreiras que te pudessem esconder. E enquanto o teu lábio inferior tremia, eu beijei-te a face encharcada e encostei a testa à tua, para tremermos juntos. Nunca foste de prosas românticas, e muito menos de contos de fadas, mas muitos foram os momentos amorosos e genuínos que eu pude viver contigo.


Talvez pelo quanto apaixonada eu estava por ti. Por esse teu jeito calado e contido, como de quem não sente nem se importa. Mas eu sempre o soube: que se me deixaras entrar na tua vida, era por me quereres nela, acima de tudo. Nunca o disseste, mas eu sabia: tu amavas-me. Dessa tua maneira livre de promessas e juras de amor. E eu julgara que não haviam palavras para descreverem o quanto sentíamos um pelo outro, mas estava errada. Elas estiveram sempre lá. Escondidas por entre os meus lábios para morrerem nos teus. Concedidas em vislumbres de olhares e de gestos. As palavras, essas, estiveram sempre lá. Nós é que optávamos por um amor silenciado, que, sem nunca dizer nada, dizia mais que muitos outros.

Ofereceste-me um único livro, uma vez. Vinha encaixado debaixo do teu braço e entregaste-mo com timidez. Folheei-o num só dia. Retratava a história de uma mulher que amara o mesmo homem a sua vida toda. Por meio de peripécias e perdas, encontravam-se e desencontravam-se, ao longo dos anos. Ele encontrava outras, ela encontrava outros, mas nenhum lhes bastava. Eram egoístas por um amor sem retorno nem devolução. Amavam-se sem nunca o confessarem. Morreram, ambos, sem se terem vivido em pleno. E eu chorei por entre a madrugada, por me ter apercebido que também seria assim que nos iríamos perder. Um do outro, e do resto do mundo.


Ainda hoje, passado tanto tempo, sou capaz de achar-te na minha varanda, a bebericares o teu café pausadamente, e a lamberes os teus lábios. E ainda hoje te encontro na superfície da minha cama, a espreguiçares-te contra mim. E apesar de não seres homem de poesias, nem de prosas românticas, há qualquer coisa no jeito com que voltas. Nunca te anuncias, simplesmente retornas à minha vida. E eu recebo-te, como se nem te esperasse. E eu abro-te a porta, como se alguma vez a tivesse trancado. E nenhum de nós diz nada. E, no entanto, as palavras, essas, continuam cá. A sobrevoar-nos como penas, a morrerem-nos nos lábios, enquanto nos beijamos. Como se nenhum tempo tivesse passado.

E eu sempre gostei de acreditar que, contigo, o tempo não passa. Que as palavras não (nos) chegam. E que a poesia não é lida, e que as prosas românticas não são contadas. Porque nunca nada disso nos bastaria, por tudo o que somos. Por tudo o que continuamos a ser. E quando começo a deixar de acreditar, aí, tu apareces. A rires da mesma forma, com o corpo todo, e a ires abaixo, com tudo o que tens.


E, aí, tu mostras-me que também eu sou o teu porto de abrigo. O teu escape dos medos e da solidão. O teu refúgio de uma realidade que, tantas vezes, parece perder o seu sentido. A tua história irresolúvel e incompreensível, que não desvendas, por estares demasiado ocupado a experienciá-la. A tua poesia à flor da pele. A tua prosa romântica, cujas linhas são os nossos beijos e os nossos corpos sobre a cama desalinhada.

Não estou apaixonada por ti. Mas não há nada que eu ame mais, do que a obra-prima que somos, quando estamos juntos.

2 comentários:

  1. Um texto sentido, como sempre. O título é perfeito.

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    1. Desculpa a resposta tardia, Cátia, mas fico muito feliz por teres gostado.

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